domingo, 4 de novembro de 2007

Domingo lúdico

Tenho uma memória olfativa surpreendente. Como o cheiro da chalá me lembra Jerusalém e pão fresco, Paris (são pães em tudo diferentes, da forma ao significado, assim como minhas recordações), descobri que arroz integral me leva a casa da Bel.
De panela aberta e cozinha quente, levitei até as lembranças da minha primeira infância. Eram muitos os cheiros naquela casa: patchouli, terra molhada, incenso, maconha e aquele azedo de criança. Havia crianças por toda parte. Crianças adultas e infantis. Conta a história que foi a primeira visita que recebi. Macacão jeans e barba. Deve ter sido também o primeiro aroma que senti fora do universo da placenta. O cheiro daquela barba que misturava todos os outros – e assim continuou mesmo depois das mudanças de idade, de casa, de credos e até com o fim da barba. Patchouli, terra molhada, incenso, maconha, azedo de criança e, descobri ontem, arroz integral. Eram esperançosos os adultos no começo dos anos 80. Tempos de abertura política, vontade hippie de paz e amor, passeata pela despoluição do mar (e nem se falava em aquecimento global), os amigos ainda não tinham morrido por causa da AIDS, nem de overdose. Havia amor. Daquele tipo puro, difícil de explicar. Éramos todos crianças brincando do que queríamos ser naquela casa encantada. Eu, bailarina. Corria, pulava, rodopiava. No som, um LP com Gilberto Gil cantando Realce. Na frente, um pau-brasil dava sementes para a gente fazer colares. Na porta lateral pouco usada, morava uma bruxa má. Ao pé da escada, uma foto de John Lennon com os óculos redondinhos tudo via. No forno, o pão integral. Na banheira, três meninas, às vezes mais, tomavam banhos de princesas. Na beira da piscina, um varal que me vazia voar. Era feliz naquele mundo lúdico. Nunca tive coragem de falar para ela o quanto sinto a falta do pai dela. E o quanto me entristeceu a morte dele. Mas como dar os pêsames se nem a gente se agüenta? Alguém que tinha nome de domingo...no plural.
Então, tampei a panela e procurei num CD perdido em meio a outros, a música de Gilberto Gil. Encontrei e, entre parafinas e purpurinas, fiz o jantar mais feliz que essas terras daqui já viram.
Ah, o arroz ficou meio sem sal, meio duro. Mas me alimentou. Como a vida faz.