segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Era um dezembro como esse janeiro, mas sem chuva

Era dezembro. De um ano qualquer. Um ano em que os cabelos dela eram longos e cacheados. Foram muitos dezembros. A campainha fazia blin-blon. Blin. Blon. A casa de parede de tijolos permanecia em silêncio. Até que passos arrastados se apressavam para abrir a tranca da porta. Só a tranca. A chave só rodava na fechadura à noite. Um abraço, um cheiro de alho, um barulho de panela no fogo. O arroz já pronto. Faltava o feijão. E bater a cenoura no liquidificador. A passagem pela sala-copa-área de serviço era feita rapidamente. O sol fazia o chão do quintal ferver. Lá no fundo, ele martelava, colava, pintava alguma coisa. Vestia shorts bege. E mantinha os cabelos impecáveis as custas de muito gel Bozzano. Um abraço apertado. Um beijo. E lá ia ela levar seus cachos queimados de sol até as panelas. Abria uma por uma. Só para confirmar o que já sabia: arroz, feijão, carne moída, creme de cenoura. Às vezes, macarrão. Com molho extra só para ela. Na geladeira, a jarra de mate, gelatina, chup-chup, doce de mamão, leite desnatado, um pedaço grande de queijo, talvez fosse parmesão, maçã, mas essa ficava escondida embaixo de tudo. Em cima do móvel azul, a lata de leite condensado cozido esfriava. No branco, bananas. Nanica, ela acha. Ela pegava os pratos, queria organizar a mesa. Arrumava os talheres, os copos e guardanapos. Voltava para a sala. Na TV, o Ponto de Vista de Cristina Franco. Ou outro quadro do Jornal Hoje. Silêncio. Silêncio para observar as fotos em cima do piano. A maior era a da menina do cabelo cacheado, mas ela nem tinha cabelo naquela primeira foto. Entrava verão, saía verão e nada do piano ser afinado como deveria. Na mesinha perto da janela, um vaso com flores artificiais e um pote outrora quebrado tentavam caçar o olhar da menina. Difícil saber o que ela pensava naquele silêncio... Que era uma princesa quando descia as escadas, que queria ser mais velha, que estava com fome, que queria beijar o menino que não dava bola para ela. Esse pote branco e azul fora colado lá no fundo do quintal, num desses dias quentes. Estava perfeito, exceto pelas marcas das cicatrizes. Mas ele sabia colar cicatrizes. Até as da menina. Até bem depois que ela perdeu os cachos. Ele colava as cicatrizes dela quando dizia baixinho "te amo". Tudo era silêncio na sala. Ela tinha tempo de colocar as ideias em ordem. Primeiro ficar mais velha, depois ser princesa. Ou ao contrário? Às vezes a casa tinha cheiro de tinta de tecido. E Minnies e joaninhas pintadas em camisetas e fraldas. Até que vozes começavam a ser ouvidas da rua. Uma voz. Aguda, alta, voz de quem tem olho verde e sorriso largo. Era difícil fazer baliza no Uno prata, mas ela conseguia. E sempre chegava rindo. E a comida ia para mesa. E a menina corria até o quintal para chamar o vô, já que a voz da vó nunca chegaria até lá. E ela sempre chamava. Ele sempre respondia que estava indo, nêga. Mas falava com o papagaio do vizinho antes de sair do quintal. Tinha um pé de carambola no vizinho. E muitos gatos que faziam xixi na entrada da casa de parede de tijolos. Ele lavava as mãos. E sentava na cabeceira da mesa redonda. A menina, à direita. A esposa, à esquerda. O restante se adaptava. E nada no mundo podia então acontecer à menina de cabelo cacheado. Nada. E se ela soubesse que um dia disso tudo só iria sobrar uma saudade da porra, ela teria ficado louca. Teria arrancados os cachos, pintado os cabelos, marcado a pele. Mas ninguém contou. Ainda bem. Assim ela pode ficar velha achando que era a princesa desse reino de paredes de tijolos e azulejos azuis. E viver feliz para sempre.