terça-feira, 31 de dezembro de 2013

E foi

E então 2013 começou após um vômito. Tudo limpo, feito o estômago de quem se descuidou e bebeu água da torneira numa madrugada quente no Rio de Janeiro. Enjoo e fogos de artifício em Copacabana. Barulho e solitude. Anda mais rápido e para frente quem sabe-se sozinho. Anda. Para. Frente.

 E anda de ônibus. Ou a pé, da Faria Lima ao shopping Morumbi. Com uma coroa de flores brancas na cabeça. Andou-se muito em 2013. Tanto que chegou aqui, do outro lado do oceano.

Anda-se sozinha, mas durante a caminhada, há de se encontrar companhia. Não há mais pai, talvez nunca tenha existido, nem avó, que se despediu elogiando meu cabelo manchado. Mas tem irmão que, com uma tatuagem, fechou meu corpo para as tristezas e descuidos do coração. Tem o avô que é só amor. Tem a madrinha com seus brincos de brilhantes, as tias que estão para o que der e vier, as primas que viraram mulheres fortes, dessas que cuidam dos outros. Tem a amiga que cuida à distância, a que te dá um envelope recheado de vida real, a que diz que te ama e sente saudades. Os amigos que compartilham meus pensamentos e meu corpo. O amigo que está vendo o pai apagar e não podemos fazer nada. Só comprar uma rifa. E há o amor, puro e sorridente, lá do alto do morro, regendo todos os encontros e desencontros.

2014 vai ser imenso. Periga não caber em 365 dias.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A palavra

Saudades, só portugueses conseguem senti-las bem porque têm essa palavra para dizer que as têm.

sábado, 19 de outubro de 2013

O ingresso

Ele está lá, fixado no painel de cortiça da cozinha da casinha em Biesdorf, em Berlim.
O ingresso.
Nele, lê-se: Patti Smith.

Sim, ela roga por nós.
Amém.

domingo, 29 de setembro de 2013

Fighter

Levo tatuada no corpo a palavra que aquele leão em forma de soldado com um inglês disléxico e sotaque grego disse que sou. E quem me deu de presente foi meu irmão.

Ninguém mais vai partir meu coração.

Ah, o amor...

O amor mora no Rio. Sob a chuva. Lá em cima, onde tudo se pode ver - da Lagoa ao Arpoador, de Copacabana ao Leblon.

Não, não é o amor que trepa. É o amor que faz vibrar os corações e as células de colágeno dos corpos ao redor. Que chama todo mundo de "nêga", como meu avô fazia com minha avó. Que abre os braços para a vida. Para o sol. Para a lua. Para o mar. Para o vento. Para a nuvem que entra pela janela. Para o coelho. O amor que nos faz todos jovens. O amor do bem. O amor que faz o mundo ser bom. E a vida, boa.

Por coincidências da vida, ou não, o taxista era cristão carismático e pregou o caminho todo. Não me incomodou. Fiquei calma. Em paz.

Ele não mentia:

"O amor alegra as pessoas, o amor cura. O amor não é sexo, não é ter. O amor é ouvir, interagir. O amor é mais forte do que a morte. (...) Deus tem sua pedagogia, ele espera. Ele está sempre falando. Carro, apartamento, barco, dinheiro. Não serve pra nada sem o bom da vida. A gente precisa do shalom. (...) Não pode profanar o coração. Sozinho a gente não faz nada. Se a pessoa ama, vê que tem talento. Pensa: tudo posso. E sai do torpor (...)."

E eu me apaixonei três vezes nos últimos dois meses. Insana e perdidamente. O primeiro é como eu. De certa forma. E disse quando já não estava apaixonada: "menina corajosa". E eu gostei. E fiquei apaixonada mais alguns minutos. O outro, bonito de cortar os pulsos, foi pra Dublin tomar cerveja. Mas quase não foi embora do meu abraço naquele domingo. E não quis conversar sobre futebol. E eu gostei. O último, ah, o último... Dentro dele há o mundo. E tanto tempo. Há um reino encantado em que quase fui princesa ("que pena que você está indo logo agora..", sussurrou ele). O príncipe mais príncipe de todos. Um príncipe que enxerga as pessoas. E que é lindo. E alto. Lindo. Alto. Lindo. Alto. Lindo. E tatuado. E lindo. Ah, o amor...

Foi por causa do jovem príncipe que percebi. Eu, que nunca soube em que momento gostaria de mudar tudo e até disse que não gostaria de mudar nada, mudaria. Mudaria o próximo passo da fração de segundo seguinte a mão dele se abrir. Aquela mão que tentei segurar em uma madrugada de 1999. Aquela mão gelada de tanto segurar o copo de vodca que tentei segurar, mas ele esticou os dedos. Ali, ali eu mudaria tudo. Tu.Do. Porque não se pode profanar o coração.

Eu aprendi.

Ah, o amor... O amor vem. A vida vem. É só chamar.

Estamos bem, Patti, obrigada


quarta-feira, 3 de julho de 2013

Que o medo não me paralise. Amém.

Desde que li na autobiografia da Patti Smith que Santa Cecília é a padroeira dos músicos, penso em Santa Cecília como a própria Patti Smith. Santa punk. Santa que amou um homem azul. E não terminou com ele. Santa que saiu de casa. Santa que passou fome e frio. Mas inventou um jeito dela de se vestir. Santa mulher.

Pois bem, entrei naquela igreja do começo do século passado que dá nome ao meu bairro para rezar para Patti Smith. Ela continua viva, eu sei, é óbvio, mas talvez rezar para os vivos tenha mais força. Afinal, eles existem mesmo. E têm força para andar por aí, o que é de grande valia por si só. Andar. Por. Aí.

Entrei e sentei. Rezei. Reparei antes que nunca tinha entrado naquela igreja apesar de passar por ali há nove anos. Lembrei que a última vez que entrei numa igreja foi em 25 de outubro, quando minha avó faleceu e eu precisava me acalmar. A penúltima vez foi para acender uma vela a Santo Antonio, no dia 13 de junho. Fui com outras três Marias e, acredite, todas estão casando. Ou quase. Já eu, bom, eu vou pra Lua. E seja o que deus quiser, como disse Caetano (ando caetaneando essa temporada), e como Patti puder me ajudar.

Rezei. "Ave Patti Smith cheia de graça, senhor é convosco, não sou cristã, mas estou aqui, com as mãos fechadas e os dedos entrelaçados, com os olhos cheios de lágrimas. Que rolam rosto abaixo. Dai-me força para não estancar. Para não paralisar. Porque eu desejei cada minuto do que está acontecendo. Eu sou responsável por isso. Que meu medo não me paralise.Tire essa ansiedade de mim. Porque tudo vai dar certo. E vai ser ótimo (eu sei, cacete). Amém".

Vi mais pessoas entrando na igreja. Era quatro da tarde. Quarta-feira. O que leva cada um até ali? Desejei que quem pedisse por saúde a alguém querido, visse seu desejo realizado depressa. Saí. Atravessei a rua. Busquei minha homeopatia que já estava pronta a essa hora.

Mas tem a saudade. E tem o rímel que escorre negro pelo meu rosto. E tem você e tem eu e não tem a gente. E, sei lá, Patti Smith vai ter um trabalhão.

E Caetano já disse tudo. Tantas vezes.

Woke up this morning
Singing an old, old Beatles song
We're not that strong, my lord
You know we ain't that strong
I hear my voice among others
In the break of day
Hey, brothers
Say, brothers
It's a long long long long way
Os olhos da cobra verde
Hoje foi que arreparei
Se arreparasse a mais tempo
Não amava quem amei
Arrenego de quem diz 
Que o nosso amor se acabou 
Ele agora está mais firme 
Do que quando começou 
It's a long road
A água com areia brinca na beira do mar
A água passa e a areia fica no lugar
E se não tivesse o amor 
E se não tivesse essa dor 
E se não tivesse sofrer 
E se não tivesse chorar 
E se não tivesse o amor
No Abaeté tem uma lagoa escura
Arrodeada de areia branca

domingo, 23 de junho de 2013

Então eu me vi - ou - este não é um texto para machucar ninguém

Demora-se vidas para ver quem somos. Há quem nunca tenha se visto. Há quem tenha sempre se visto pelo olhar do outro. Há quem veja seu reflexo no espelho torto do circo e acredite mais nele do que no toque das próprias mãos. Há quem leia, faça terapia, jogue tarô, beba e vomite um chá amargo, entre em transe ou vá ao cinema para tentar ver um filete de luz que se pareça consigo mesmo. E nem assim se vê.
E há quem se enxergue claramente em um dia qualquer. Dentro do elevador. Depois do sexo. No caminho da padaria. Ou com a areia suja da cidade em que nasceu entre os dedos dos pés. Ou ainda durante um grito de protesto com os braços levantados numa avenida de prédios espelhados.

E ela se viu. Entre o outono e o inverno, entre os 33 e 34 anos. E viu uma mulher. Pequena. E meio gigante. De cabelo castanho claro, apesar de todos os pigmentos que adiciona a ele. Olhos enormes. De ressaca, depois das cervejas da sexta-feira. Com vontade de se espalhar pelo mundo, correr da praia aos alpes, de ônibus, metrô ou teleférico. Sem quinquilharias na mala, sem tristezas na nécessaire. Nada carregar-se-á do passado. Só as certezas. Sólidas. Não há ilusões.

O amor, aquele azul e trôpego, já não a emociona. Não há volta no caminho caminhado. Não se congela a vida na despedida de Bogart e Bergman. A vida é para ser vivida, usada, amassada, vomitada. Nada é para sempre.

"You are a fighter", disse o soldado cipriota. E ela é. Não porque ele diz, mas ela é. E aqueles olhos disléxicos sempre a viram por dentro mesmo, não há razões para duvidar. A fighter de risada alta e dona do próprio corpo. É difícil mesmo de acompanhar.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Vem vida!


quarta-feira, 15 de maio de 2013

O tempo

Sonhei que tinha que pintar na parede o coelho da Alice. Em um apartamento que nunca fui, mas era meu.
Não era só a Alice. Era o coelho. E o relógio. E o tempo que passa. E a vida que muda.
Acordei com medo. Queria uma parede branca. Sempre branca. Parede branca com vista pro mar. Esse sim, autorizado a mudar todo dia. Mas eu sou um pouco de mar também. E areia. E porto. Que nunca para.
E aí ele veio. E eu em crise. E ele em crise. E o mundo girando ao contrário na roda de uma bicicleta. Em crise. E os 30 anos são de 30 crises por dia. E eu só queria uma parede branca.
Mas ele veio falar. Veio como veio em 2000 e me disse que era bom sair da casa da minha mãe. E eu carreguei as panelas serra acima. Veio como veio em 2004. E, numa praça de alimentação de um supermercado da Marginal, disse que eu estava certa em deixar aquele trabalho que eu não gostava. Disse com aqueles olhos de 25 anos. Aquele olhar em que ainda cabia o mundo. E tem cheiro de perfume comprado em Nova York. E gel no cabelo. Veio como veio em 2011 me resgatar da beira do penhasco. E disse: "sai". E eu saí. E agora disse "vai".
E o coelho sussurra: é tarde, é tarde, é muito tarde.
E eu fico pequena e fico grande. Eu giro. Eu danço. Eu choro. Eu não sei.
Só sei que teremos uma saideira. E a vida segue.



segunda-feira, 1 de abril de 2013

Colagem

Ele, que já me quebrou tantas vezes, hoje me colou. Caquinho por caquinho. Colou com aqueles olhos de menino de 20 anos que ainda vive dentro dele. E o papo furado que sempre me fez voltar para ser caco novamente. Colou com a cola da angústia que dividimos. Desse mundo perdido. Desse amor perdido que virou um amor encontrado maior do que qualquer amor pretendido. E, no meio dessa valsa que a vida dança, só posso pensar que ter virado farelo tantas vezes só me ajuda a espatifar menos. Mesmo que ainda me canse. Mesmo que ainda me entristeça. Hoje sou um caco grande. Um caco maior que é colado mais facilmente. E um remendo que nem cicatriz vai deixar. Ele me colou. E eu sorri em paz quando a porta de vidro fechou atrás de mim. A porta, de vidro. Eu, de vida.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Era um dezembro como esse janeiro, mas sem chuva

Era dezembro. De um ano qualquer. Um ano em que os cabelos dela eram longos e cacheados. Foram muitos dezembros. A campainha fazia blin-blon. Blin. Blon. A casa de parede de tijolos permanecia em silêncio. Até que passos arrastados se apressavam para abrir a tranca da porta. Só a tranca. A chave só rodava na fechadura à noite. Um abraço, um cheiro de alho, um barulho de panela no fogo. O arroz já pronto. Faltava o feijão. E bater a cenoura no liquidificador. A passagem pela sala-copa-área de serviço era feita rapidamente. O sol fazia o chão do quintal ferver. Lá no fundo, ele martelava, colava, pintava alguma coisa. Vestia shorts bege. E mantinha os cabelos impecáveis as custas de muito gel Bozzano. Um abraço apertado. Um beijo. E lá ia ela levar seus cachos queimados de sol até as panelas. Abria uma por uma. Só para confirmar o que já sabia: arroz, feijão, carne moída, creme de cenoura. Às vezes, macarrão. Com molho extra só para ela. Na geladeira, a jarra de mate, gelatina, chup-chup, doce de mamão, leite desnatado, um pedaço grande de queijo, talvez fosse parmesão, maçã, mas essa ficava escondida embaixo de tudo. Em cima do móvel azul, a lata de leite condensado cozido esfriava. No branco, bananas. Nanica, ela acha. Ela pegava os pratos, queria organizar a mesa. Arrumava os talheres, os copos e guardanapos. Voltava para a sala. Na TV, o Ponto de Vista de Cristina Franco. Ou outro quadro do Jornal Hoje. Silêncio. Silêncio para observar as fotos em cima do piano. A maior era a da menina do cabelo cacheado, mas ela nem tinha cabelo naquela primeira foto. Entrava verão, saía verão e nada do piano ser afinado como deveria. Na mesinha perto da janela, um vaso com flores artificiais e um pote outrora quebrado tentavam caçar o olhar da menina. Difícil saber o que ela pensava naquele silêncio... Que era uma princesa quando descia as escadas, que queria ser mais velha, que estava com fome, que queria beijar o menino que não dava bola para ela. Esse pote branco e azul fora colado lá no fundo do quintal, num desses dias quentes. Estava perfeito, exceto pelas marcas das cicatrizes. Mas ele sabia colar cicatrizes. Até as da menina. Até bem depois que ela perdeu os cachos. Ele colava as cicatrizes dela quando dizia baixinho "te amo". Tudo era silêncio na sala. Ela tinha tempo de colocar as ideias em ordem. Primeiro ficar mais velha, depois ser princesa. Ou ao contrário? Às vezes a casa tinha cheiro de tinta de tecido. E Minnies e joaninhas pintadas em camisetas e fraldas. Até que vozes começavam a ser ouvidas da rua. Uma voz. Aguda, alta, voz de quem tem olho verde e sorriso largo. Era difícil fazer baliza no Uno prata, mas ela conseguia. E sempre chegava rindo. E a comida ia para mesa. E a menina corria até o quintal para chamar o vô, já que a voz da vó nunca chegaria até lá. E ela sempre chamava. Ele sempre respondia que estava indo, nêga. Mas falava com o papagaio do vizinho antes de sair do quintal. Tinha um pé de carambola no vizinho. E muitos gatos que faziam xixi na entrada da casa de parede de tijolos. Ele lavava as mãos. E sentava na cabeceira da mesa redonda. A menina, à direita. A esposa, à esquerda. O restante se adaptava. E nada no mundo podia então acontecer à menina de cabelo cacheado. Nada. E se ela soubesse que um dia disso tudo só iria sobrar uma saudade da porra, ela teria ficado louca. Teria arrancados os cachos, pintado os cabelos, marcado a pele. Mas ninguém contou. Ainda bem. Assim ela pode ficar velha achando que era a princesa desse reino de paredes de tijolos e azulejos azuis. E viver feliz para sempre.