quinta-feira, 29 de maio de 2008

Quando a dor acorda

Na cela fria e úmida de um navio negreiro dorme a dor. Lá dentro não há luz. Nem comida. E a dor às vezes se esquece onde está. Os rangidos da madeira velha do casco da embarcação parecem garças voando banhadas de sol em Copacabana e, quando os ouve, a dor pensa que é amor. Ela, então, respira fundo e o limo transforma-se em eucalipto em suas narinas, a escuridão é o sono do amado que a abraça e a fome é o cansaço do sexo. A dor se confunde para sobreviver.

Até que vem a chuva. E a tormenta agita o mar que sacode a dor. Ela bate a cabeça na grade fria. Ecoa o vazio de dentro da alma e sangra. Quando a dor escorre, ela se lembra. E cresce. Acordada, as grades não são nada. A dor ultrapassa o ferro. Rompe o cadeado. Assume o comando e iça as velas. A dor navega nas águas de Vasco da Gama. Nada diminui a dor. Nem os dias de sol. Ela se perde, mas não recua. Ela precisa se espalhar. Deixar descendentes. Pára nos portos sujos e se enlaça às mulheres que se despedem dos amantes. Enrosca-se no pescoço dos marinheiros que não carregam lembranças e fecunda as mães de um único amor. Não há como escapar. Os navios são idênticos. Quando a dor está acordada, são silenciosos de tristeza e, quando dormindo, de medo. Não há como saber de longe.

Você é a dor que navega pelas minhas artérias. Oscilando entre fervura e água fria. Me amando e me expulsando. Me ganhando e me perdendo - mesmo que esteja tão dentro de mim que eu precisaria nascer outra para, talvez, não ser você.

Durma em mim, por favor.

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