sábado, 10 de maio de 2008

A menina que não tinha sonhos

Contos de Fadas para a Criança Sabedoria - III

Ela não sonhava. Nunca. Nem dormia. E, de tanto passar as noites em claro, ganhou seu segundo nome: Clara. Logo, Ana Clara. A menina que não tinha sonhos só conhecia o presente e o passado. Café da manhã, almoço, jantar. Leite quente com mel e biscoitos de polvinho às 4h30. Para esperar o Sol nascer sem a barriga roncar. Escovar os dentes antes das refeições, lavar as mãos após fazer xixi, não misturar queijo com carne. Olhar antes pelo olho mágico para abrir a porta e para os dois lados da rua antes de atravessar.
O médico da família explicou que os pais, Dias e Lilith, desenvolveram juntos um novo tipo de cromossomo, que excluía a necessidade do sono e do sonho para a sobrevivência da espécie. Dr. Araújo quis vender em ampolas a nova célula - ficaria milionário. Era a cura para a frustração: sem sonhos irrealizáveis, sem tristezas. A humanidade estaria salva do mal do século. Mas o casal se recusou. Conhecedora do lado negro da alma, dos pecados e da morte, Lilith queria que a filha levasse uma vida normal. E que a população enfrentasse individualmente seus temores. Assim, mudaram-se para uma casa branca com jardim muito florido a porta e decidiram se revezar na criação de Ana Clara.
Dias, o pai, cuidava da menina que não tinha sonhos enquanto o Sol iluminasse o firmamento. Levava à escola, ao dentista, à natação e a ensinava como andar de bicicleta. À noite, Lilith, a mãe, cobrava a lição de casa, lia a história do mundo e contava os segredos do vento para Ana Clara. Sempre às 6h - único horário em que ambos estavam acordados -, Dias e Lilith comiam panquecas com melado e tomavam chá de flor de liz. E conversavam. Falavam de seus sonhos. Dias passeava por caminhos de tijolos de ouro, conversava com dragões, escalava montanhas mágicas e voava nas asas de borboletas. Lilith sonhava com Paris, com o ar-condicionado do carro, com uma máquina de lavar nova e que, um dia, Ana Clara pudesse sonhar também. Mas a menina permanecia alheia. De olhos bem abertos e coração vazio.
Até o dia em que fez um passeio ao campo com a escola. Entre vacas, porcos, galinhas e milhões de crianças gritando excitadas, Ana Clara viu Diamante. Um corcel. Digno. Negro como a mãe e forte como o pai.
A menina que não tinha sonhos passou mal. Vomitou no pequeno All Star cor-de-rosa e teve que voltar para casa mais cedo. Ardendo em febre, desacordou. E, já nos braços de Lilith, alucinou. Em frases desconexas, falou em cavalgar (sem putarias porque isso é um texto sério para crianças) livremente pela Champs-Élysées de paralelepípedos dourados. Emocionados, o pai e a mãe se olharam. Reconheceram, enfim, outro gene até então latente, a mistura dos sonhos dos dois em Ana Clara. E entenderam que, ao invés de se dividirem para cuidar da menina que não tinha sonhos, deveriam se unir. Ela logo ficou boa. Demorou um pouco para entender o que era dormir. Detestava a cara amassada pelo lençol e o gosto na boca ao se levantar pela manhã. Mas não reclamou. Passou a se alimentar melhor e a conversar mais na escola. Nos desenhos que fazia já se imaginava de médica ou bailarina. Sonhava. E com o futuro.

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