domingo, 27 de abril de 2008

O menino que comia livros

Contos de Fadas para a Criança Sabedoria - II

Começou cedo. Logo que desmamou das tetas fartas da mãe enxaqueca, devorou o primeiro conto de fadas que ouvira falar. Era a história do Isqueiro Mágico, de Hans Christian Andersen. Ele só comeu as páginas escritas. Deixou as ilustrações penduradas na parede como um caçador deixaria as cabeças dos servos que capturou na floresta. E apreciou a cena do cadeirão de madeira logo após tomar o suco de laranja lima que a mãe enxaqueca havia espremido com tanta reclamação.
O menino crescia forte. A base de literatura. Cansado do sabor adocicado das fábulas, experimentou a literatura clássica. Moby Dick o alimentara por uma semana. E Robson Crusoé abrira ainda mais o apetite do menino que comia livros.
Aos sete anos, já havia esvaziado boa parte da estante do pai felicidade. Que nem ligava. Só sorria. Achava engraçado não precisar gastar na feira com alimentos frescos para seu rebento. A estante satisfazia - e alimentava - o menino que comia livros.
Na escola, sentia vergonha. Os olhares dos amigos o censurava. No recreio, comia escondido as páginas recicladas do dicionário de capa dura. Cada dia uma letra. E lá se foram mais de quinze dicionários. Quando engordou um pouco, o pai felicidade precisou comprar versões menores. E o menino que comia livros ganhou uma lancheira de lata para guardar os mini-dicionários.
Enquanto isso, a mãe enxaqueca corria contra a fome do filho para ler todos os livros do mundo. Eram muitos todos os livros do mundo, mas ela sabia que era só uma questão de tempo até que o menino que comia livros devorasse tudo. Seu filho ia crescendo e seu apetite acompanhava o ritmo acelerado da adolescência.
Um dia, numa livraria – chamada de padaria pelo menino - entre uma estante com os livros amargos de Camus e os salgados de Jorge Amado, o menino que comia livros viu uma cabeleira ruiva. Era pequena a menina ferrugem e, com a facilidade que só as pequeninas têm, lambia alegremente as capas de cada publicação que encontrava. Sua face mudava de acordo com o gosto, como se estivesse numa sorveteria de sabores infinitos. Ao terminar de passar a língua delicadamente sobre a Antologia Poética de Vinicius de Moraes, de repente, não mais que de repente, os olhos dos dois se cruzaram. Estarrecidos. Assustados. Deslumbrados. Ela, num misto de medo e surpresa, devolveu o livro à prateleira. Sem movimentos bruscos. Ele sorriu. Ela, aliviada, relaxou os ombros e sorriu de volta.
- oi, sou o menino que come livros. Meu nome é Pedro.
- e eu sou Isabela. A menina ferrugem.
Encostaram as mãos singelamente. Primeiro um dedo, depois outro. Até o braço todo. Lado a lado. E começaram a conversar. De sabores. Ambos sabiam que as tristezas, quando salgadas, já foram felicidade. Mas quando amargas, foram só decepção. A saudade só era doce para as crianças e os velhos. Para os adultos, azeda. E o amor? O amor era tutti-frutti. Um sabor inventado. Misturado. Sonhado.
Perto da seção de Culinária Portuguesa, beijaram-se devagar. “Comeste Saramago?”, perguntou Isabela. Ele acenou com a cabeça confirmando que sim. “Eu lambi O Primo Basílio”, ela confessou com o rosto enrubescido e um olhar maroto. “Eu sei”, disse malicioso.
Depois do beijo, ficou combinado que o menino que comia livros encontraria a menina ferrugem todos os dias entre as prateleiras daquela livraria. Sempre no mesmo horário.
Ela foi para casa com o sabor de toda a literatura do menino Pedro entre os lábios. Ele, de olhos fechados, sentia o doce gosto de Isabela espalhado por todo céu da boca.
Em casa, o menino que comia livros preferiu a macarronada da mãe enxaqueca, talvez só aquela noite. Quem sabe...E a menina ferrugem pediu sorvete de flocos para sobremesa. O dia seguinte seria de sabores suficientemente instigantes. Era melhor não atrapalhar o paladar.
E, assim, a mãe enxaqueca conseguiu ter só para si a estante do pai felicidade. E todos viveram felizes para sempre.