segunda-feira, 16 de março de 2009

Enterro

Ela não dormiu. Viu a chuva cair com cheiro de mar por duas vezes. Viu os pingos em prata molharem o solo. E não dormiu. Os pensamentos chegavam. Teria que encaixotar os livros. Doaria metade. Do guarda-roupa, nada aproveitaria. Aquele vulto de gente não usava peças que a agradavam. Nem ela a agradava. Desde cedo, ela sabia. Não gostava dela. No coração vazio, não sentia remorso. Só alívio. Agora, seria orfã de verdade. Não precisava mentir ou desconversar quando outros amigos falavam de suas famílias e suas festas e suas comidas preferidas. Quanto seria o seguro de vida? Fez uns cálculos rápidos. Não seria muito. Talvez, desse para comprar um notebook novo. Ou uma passagem aérea. Talvez. O fato era que tudo que aquele velho vulto acumulara em vida, ela já tinha conseguido em um terço de existência - e o destino já tinha até tratado de tirar dela para que ela conquistasse tudo de novo. C'est le tourbillon de la vie.
O mais complicado seria providenciar caixão, cova etc. Ela não entendia nada disso. Ia ligar para a tia por volta das 10h. Ou assim que a polícia encontrasse o corpo. Ela estava sem nenhuma peça preta na sacola. E teria que faltar no trabalho na segunda-feira. Ficou de mau humor. Tinha muito que fazer. Mas tudo bem. Não teria mais que emprestar dinheiro a ninguém.
Aos poucos o sol foi clareando o céu. As mãos de tanto apoiar no metal da janela ficaram vermelhas. Ela decidiu ir embora - mesmo que metaforicamente. Fechou os olhos - e a porta - e foi. Agora, aos quase trinta, só carregava um sobrenome por conveniência. Era finalmente livre, sem compromissos ou culpa pela solidão alheia. Porque já não pertencia a nada. Nem aos remorsos familiares.

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