segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Flora e James

Ela atravessou a rua correndo e entrou descabelada no bar. Chovia lá fora e sua jaqueta de couro estava molhada. Bastou dar um olhar pelo ambiente esfumaçado para identificar a nuca dele. A labareda tatuada fugia pela gola da camisa. E só ele inclinava a cabeça daquele jeito quando estava sozinho na mesa. Ela reconheceria de longe.
-Oi James, tá aqui faz tempo? Desculpe, o fechamento me prendeu na revista.
Ele apenas negou com a cabeça, não disse nada. Ela sentou e pediu um chopp.
Flora e James se conheciam há tempos. Tanto que não precisavam dizer metade das palavras previstas num diálogo normal. Mas ela falava. Muito. E, quando calava, ainda tinha a fama de ser tagarela. Fazer o quê?
Ela era editora de uma revista feminina, dessas que ninguém leva a sério. Mas Flora levava. Ele era videomaker - pelo menos era nesse dia. James mudava muito de idéia. E de mulher. Afê. Como gostava de mulher esse James!
No primeiro copo, amenidades. O tempo, a gripe da filha de James, os prazos de fechamento, os problemas com os jornalistazinhos que as faculdades formam sem preparo, os publicitários que liberam pouca verba - mas têm muito dinheiro, os textos da Carta Capital. Os mesmos assuntos de sempre - desde o século passado. Segundo copo: entra pela porta um affair de Flora. Caso curto, sem muita importância, mas ela faz um comentário irritado sobre a falta de compromisso dele. James filosofa:
-Qualquer pessoa com o mínimo de inteligência sabe que esses namoricos de adolescência não duram muito e sempre, ou na maioria das vezes, acabam com briga. Acabam mal.
-E?
-E, quando acabam, a gente não tem mais contato. Eu mesmo falo com poucas ex-namoradas. Quando a gente gosta mesmo, não quer passar por isso. Então, não precisa estragar um relacionamento legal com um namoro de merda.
-Ah, sei. James, isso não faz sentido.
-Faz sim. Para mim, isso é muito claro. Tem gente que fica para sempre. Você sabe.
Ele aponta para ela com cara de "não é óbvio para você?". Não, para ela não é (nouvelle vague é para meninos e ela, que era menina, só via Almodóvar). Mas a conversa continuou.
James parou de fumar desde que a filha nasceu. E Flora começou desde que virou chefe. Mas só gostava de Gitanes porque eram os mesmos de Camus. E, como a produção foi interrompida em 2005, ela nunca fumou. Eles beberam mais um pouco e foram embora por uma São Paulo fria, mesmo em dezembro. Cada um para sua casa, com a certeza de se verem no dia seguinte. Sem se preocupar se vão se telefonar, sem ter dúvidas de que querem se ver de novo. Eles querem.
Depois de destrancar as cinco fechaduras de casa, ela tirou as botas apertadas e sentou no sofá. Flora sorriu perdida nos pensamentos. No primeiro dia em que se viram, ela estava de jeans, regata e tênis. Ele, de camiseta branca e jeans. E corria num carro prateado. James, Dean, para ela. Eram tão diferentes da dupla que estava sentada num bar escuro nos Jardins! E eram os mesmos. Ela se apaixonou. Ele, se estiver certo nesse raciocínio bizarro, também, mas não sabe. De lá para cá, foram tantos lençóis entre eles - e com eles - tantas músicas, tantos verões e invernos que seria possível escrever um filme, desses com o Ricardo Darín - aliás, Flora achava que O mesmo amor, a mesma chuva, era para ela. Who knows... Ela às vezes sofria. Mas passava. Eles se desencontravam. E se encontravam. Contavam as novidades. E ficavam bem. Um com o outro. Seduziam-se, por hábito. Sem mãos dadas. Sem promessas tolas. Sem perder tempo.
Flora e James não eram um casal. E ela sabia. E calava tranquila. "Ah, esse James!".

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