terça-feira, 1 de março de 2011

Era uma vez um sádico e uma bailarina

Do dicionário

"Sadismo: prazer com o sofrimento alheio".

Não, eles não têm um caso. Nem nunca tiveram. E eles não têm nada a esclarecer um ao outro.

Ela o amou muito e foi relevando todas as mancadas, bebedeiras, grosserias, vaidades. Ela relevou. E seguiu amando paciente. E suportando o peso de um sádico dançando sobre seus escombros e tristezas. Ela suportou. Ela pensou que, tal qual o fim de um livro de Gabriel García Márquez, eles pudessem ficar juntos. Um dia. Tranquilos. Mas não podem.


Aí, veio um soldado cipriota e plantou entre tantas cicatrizes uma semente de amor. Puro. Amor que dá a mão de manhã. Amor que bagunça a casa. E virou rei desse corpo. O reinado, sabe-se, tinha dia e hora para acabar. E acabou. Sem cicatrizes. Sem mesquinharias. Sobrou o amor. Que ele ainda espalha entre a neve polonesa.

Ela, forte e leve, amada, foi perambular pela noite. Se encantou com gatos e sapatos, dormiu com o rei momo de olhos verdes e descobriu que transa que nem música! Não, o sádico nunca soube. Que tolo. O sádico nunca saberá. O sádico a fez sangrar o corpo na primeira vez e manteve a alma dela em hemorragia. E é só isso. O sádico transa com ele mesmo. É primo de Narciso. O sádico transa entre coxas rígidas e espalha a tristeza. Acha que isso é vida, pobre dele.

Então, ela estava lá. Um dia, no meio da chuva, o céu nublado escondeu o caminho. Ela perdeu o compasso e caiu no abismo de 2010 - ou seria 1999? Quanto chegou ao chão, o som metálico de seu corpo batendo na fórmica estourou os curativos das cicatrizes e ela ardeu. As memórias saltaram como pus. O sádico regozijou. Era o palco que ele precisava para testar sua vaidade. Bronzeado de dias na praia, sapateou na cabeça dela e proferiu sua filosofia sádica e macabra. Ela morreu.

Mas a chuva caiu forte entre marchinhas de carnaval e alagou a cidade cinza dos sem amor. A chuva levou o pus daquele corpo bege e sem vida e fez novamente brotar a semente cipriota. Guardada com o carinho que uma criança envolve um feijão num algodão, a semente do amor fala sempre mais alto quando brota. E ela ouviu.

A semente diz com sotaque grego que aquele sádico não pode julgá-la. Que não é ele quem vai rotular os relacionamentos dela. E que não é ela quem se esconde.

A semente diz entre cafés turcos que ela não gosta mais dele - por isso ele não subiu até o apartamento dela em dezembro, por isso ela não o desejou no Réveillon...

A semente diz que ela precisava ir ao pilates. E ela foi. Os músculos da bailarina precisam estar rígidos para que ela continue transando que nem música por aí.

E o sádico? Ah, ele precisa de tratamento. Mas isso não é problema dela.

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