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O mundo é cheio de poesia. Como Otto me ensinou.
Coloquei o colar de contas que ele me deu hoje. Não sabia. Mas fui transportada para 2006. E foi bom.
Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim.
Ai meu bem, não faz assim comigo não!
Você tem, você tem que me dar seu coração!
Meu amor, não posso esquecer,
Se dá alegria faz também sofrer.
A minha vida foi sempre assim:
Só chorando as mágoas que não têm fim.
Essa história de gostar de alguém
Já é mania que as pessoas têm.
Se me ajudasse Nosso Senhor,
Eu não pensaria mais no amor.
Do dicionário
"Sadismo: prazer com o sofrimento alheio".
Não, eles não têm um caso. Nem nunca tiveram. E eles não têm nada a esclarecer um ao outro.
Ela o amou muito e foi relevando todas as mancadas, bebedeiras, grosserias, vaidades. Ela relevou. E seguiu amando paciente. E suportando o peso de um sádico dançando sobre seus escombros e tristezas. Ela suportou. Ela pensou que, tal qual o fim de um livro de Gabriel García Márquez, eles pudessem ficar juntos. Um dia. Tranquilos. Mas não podem.
Aí, veio um soldado cipriota e plantou entre tantas cicatrizes uma semente de amor. Puro. Amor que dá a mão de manhã. Amor que bagunça a casa. E virou rei desse corpo. O reinado, sabe-se, tinha dia e hora para acabar. E acabou. Sem cicatrizes. Sem mesquinharias. Sobrou o amor. Que ele ainda espalha entre a neve polonesa.
Ela, forte e leve, amada, foi perambular pela noite. Se encantou com gatos e sapatos, dormiu com o rei momo de olhos verdes e descobriu que transa que nem música! Não, o sádico nunca soube. Que tolo. O sádico nunca saberá. O sádico a fez sangrar o corpo na primeira vez e manteve a alma dela em hemorragia. E é só isso. O sádico transa com ele mesmo. É primo de Narciso. O sádico transa entre coxas rígidas e espalha a tristeza. Acha que isso é vida, pobre dele.
Então, ela estava lá. Um dia, no meio da chuva, o céu nublado escondeu o caminho. Ela perdeu o compasso e caiu no abismo de 2010 - ou seria 1999? Quanto chegou ao chão, o som metálico de seu corpo batendo na fórmica estourou os curativos das cicatrizes e ela ardeu. As memórias saltaram como pus. O sádico regozijou. Era o palco que ele precisava para testar sua vaidade. Bronzeado de dias na praia, sapateou na cabeça dela e proferiu sua filosofia sádica e macabra. Ela morreu.
Mas a chuva caiu forte entre marchinhas de carnaval e alagou a cidade cinza dos sem amor. A chuva levou o pus daquele corpo bege e sem vida e fez novamente brotar a semente cipriota. Guardada com o carinho que uma criança envolve um feijão num algodão, a semente do amor fala sempre mais alto quando brota. E ela ouviu.
A semente diz com sotaque grego que aquele sádico não pode julgá-la. Que não é ele quem vai rotular os relacionamentos dela. E que não é ela quem se esconde.
A semente diz entre cafés turcos que ela não gosta mais dele - por isso ele não subiu até o apartamento dela em dezembro, por isso ela não o desejou no Réveillon...
A semente diz que ela precisava ir ao pilates. E ela foi. Os músculos da bailarina precisam estar rígidos para que ela continue transando que nem música por aí.
E o sádico? Ah, ele precisa de tratamento. Mas isso não é problema dela.