sábado, 27 de fevereiro de 2010

Colcha laranja

Eu sou o fio solto da colcha laranja. O aborto não feito. O que faz parte sem fazer. Sou quem não cabe no carro, quem não concorda, quem não encaixa. Sou o sonho realizado às avessas. O parto a fórceps. Sou um erro.

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A colcha laranja veio de uma ilha distante na mochila de um cipriota. Veio para mim. Não foi por acaso. Não foi sem querer. Nem porque eu pedi. Veio de presente. Porque ele gostou de mim. E quando faz sol, a colcha ilumina toda minha casa de luz laranja. Espelha vida em paredes azuis de cansaço.

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Quando ele foi embora, chorei. E ele viu. E abraçou minhas lágrimas no meio do parque. Talvez por isso, e só por isso, ele entenda minha dor sem medi-la (e olha que ele, um soldado órfão, poderia fazer isso com autoridade). Talvez por isso, tenha se calado tantas vezes só para escutar meu inglês ruim. E talvez por isso, só por isso, ele seja um homem maior que os outros. Mesmo que não seja amor.

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Só quem nasceu em cidades portuárias como Santos, Buenos Aires, Nova York e Pafos, sabe a falta que o cheiro podre de combustível e mar e a luz laranja da noite atracada fazem. Só essas pessoas acostumadas a umidade se entendem sem palavras e sofrem sem lágrimas. O resto finge.

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